Assisti à peça “A Última Fake News”, um musical que mistura contrastes entre o dramático e o épico, prosa e poesia, ruído e música (e, na minha cabeça, influências de Bertolt Brecht, do Teatro da Crueldade e Björk — sim, a cantora islandesa). O espetáculo retrata a saga do Bebê-Diabo, uma figura que nasceu nas páginas de um jornal sensacionalista em 1975 e foi estigmatizada como filho do capeta. A narrativa aborda três perspectivas distintas: a do povo, a dos jornalistas e a do próprio Bebê-Diabo, explorando temas como sensacionalismo e seu impacto na sociedade atual.
“Nós te damos pão e circo pra você deixar de pensar”, essa foi uma das frases que me marcou profundamente durante a peça. Essa crítica direta ao controle e manipulação da informação me fez refletir sobre a origem dessa história e suas implicações nos dias de hoje.
O Notícias Populares e o Bebê-Diabo
Por pura coincidência, eu estava lendo o livro “Nada Mais Que a Verdade — A Extraordinária História do Jornal Notícias Populares” quando fui assistir à peça. Por isso deduzi que o jornal fictício Diário da Massa, mencionado na peça, é uma representação do Notícias Populares (NP), um tabloide famoso que circulou no Brasil entre as décadas de 60 e 90. O livro relata o surgimento e a trajetória do tablóide e, num dos capítulos, fala sobre o inusitado caso do nascimento do Bebê-Diabo no ABC:
Em 10 de maio de 1975, sem grandes notícias para preencher a manchete, a redação do NP decidiu explorar o caso de um bebê que nasceu com uma deformidade no cóccix e pequenas saliências na testa. A partir de informações escassas e sem confirmação oficial, o folhetim estampou a manchete: “Nasceu o Diabo em São Paulo”. A história ganhou proporções gigantescas, alimentando o imaginário popular e vendendo milhares de exemplares.
Essa abordagem sensacionalista não foi casual. O NP foi deliberadamente criado para desviar a atenção da população dos movimentos de esquerda que ganhavam força no país durante a década de 60. Ao oferecer conteúdos chocantes e apelativos, o diário mantinha os leitores entretidos e pouco críticos em relação às questões políticas e sociais emergentes.
A SAGA DO BEBÊ-DIABO NAS MANCHETES:
O Impacto da Exposição Negativa na Mãe e no Bebê-Diabo
A sequência incessante de manchetes sensacionalistas sobre o Bebê-Diabo, publicada pelo Notícias Populares entre 11 de maio e 6 de junho de 1975, provocou uma exposição massiva e negativa para a mãe e seu filho recém-nascido. A cada dia, uma nova chamada incendiava o imaginário popular:
11/05 NASCEU O DIABO EM SÃO PAULO
12/05 BEBÊ-DIABO DESAPARECE
13/05 FEITICEIRO IRÁ AO ABC EXPULSAR O BEBÊ-DIABO
14/05 BEBÊ-DIABO DO ABC PESA 5 QUILOS
15/05 BEBÉ-DIABO INFERNIZA O PADRE DO ABC
16/05 Nós VIMOS O BEBÊ-DIABO
17/05 POVO VAI VER O BEBÊ-DIABO
18/05 PROCISSÃO EXPULSARÁ BEBÊ-DIABO
19/05 VIU BEBÊ-DIABO E FICOU LOUCA
20/05 SANTO PREVIU O BEBÊ-DIABO
21/05 BEBÊ-DIABO NOS TELHADOS DAS CASAS DO ABC
22/05 MÉDICO AFIRMA: O BEBÊ-DIABO NASCEU NO ABC
23/05 DIABO EXPLODE MUNDO EM 1981
24/05 BEBÊ-DIABO PAROU TÁXI NA AVENIDA
25/05 FAZENDEIRO É O PAI DO BEBÊ-DIABO
26/05 BEBÊ-DIABO VIAJA PARA VER O PAI
27/05 BEBÊ-DIABO APARECE NO LUGAR DO ECLIPSE
28/05 MAIS 7 VIRAM O BEBÊ-DIABO
29/05 BISPO MORRE DE MEDO DO BEBÊ-DIABO
30/05 BEBÊ-DIABO ARRASA COM RITUAL DE UMBANDISTA
31/05 FANÁTICOS AMEAÇAM BEBÊ-DIABO NO ABC
01/06 SEQUESTRADO BEBÊ-DIABO
02/06 BEBÊ-DIABO À MORTE
03/06 BEBÊ-DIABO FOGE PARA O NORDESTE
04/06 PADRE DE MARÍLIA “EU ACREDITO NO BEBÊ-DIABO DO ABC”
05/06 ZÉ DO CAIXÃO VAI CAÇAR BEBÊ-DIABO NO NORDESTE
06/06 POVO VÊ NOVO BEBÊ-DIABO DO ABC
Essas notícias transformaram uma criança com uma simples deformidade física em um fenômeno midiático carregado de superstição e pânico. A mãe, já fragilizada pelo pós-parto, enfrentou o peso de ver seu filho retratado como a encarnação do mal. A comunidade, influenciada pelas matérias, possivelmente a isolou e a tratou com hostilidade.
A privacidade da família foi violada. Curiosos, crentes nas manchetes e indivíduos mal-intencionados podem ter assediado a mãe, tornando seu cotidiano insuportável. O estigma associado ao Bebê-Diabo afetou profundamente a dignidade e o bem-estar dos envolvidos.
Não há confirmações específicas sobre as consequências enfrentadas pela mãe e pelo bebê, mas ainda assim é possível se considerar que a intensa exposição negativa provavelmente afetou suas vidas. A cobertura sensacionalista transformou uma criança com uma deformidade física em um fenômeno midiático, gerando estigma e possivelmente discriminação. A mãe, já vulnerável no pós-parto, pode ter enfrentado isolamento social e invasões de privacidade devido à atenção indesejada. Embora não possamos afirmar com certeza como foram impactados, o caso destaca como a mídia pode influenciar negativamente indivíduos reais e ressalta a importância de práticas jornalísticas responsáveis.
Esse caso ilustra como a mídia irresponsável pode destruir vidas. A busca por vendas e audiência, sem ética ou empatia, transformou pessoas reais em vítimas de uma história na qual não escolheram estar. O sensacionalismo sobrepôs-se ao respeito e à humanidade.
A saga do Bebê-Diabo exemplifica os perigos de uma imprensa que não valoriza a verdade e o bem-estar alheio. Serve como um lembrete da importância de práticas jornalísticas responsáveis e do respeito aos direitos individuais, especialmente dos mais vulneráveis. Precisamos questionar as informações que consumimos e defender uma mídia que priorize a ética acima do lucro e do espetáculo.
O Espelho Quebrou: A Morte da TV e o Surgimento das Redes Sociais
Numa das cenas de grande impactanto da peça, um ator encena a morte da TV ao som do coro: “O espelho quebrou, o coração explodiu, estou catando os pedaços do que sobrou de mim”. Essa metáfora poderosa parece representar a fragmentação dos meios de comunicação tradicionais e a ascensão das redes sociais como principal fonte de informação.
Assim como o NP usava manchetes exageradas para capturar a atenção dos leitores, as redes sociais atuais estão repletas de notícias falsas e sensacionalistas que se espalham em velocidade alarmante. Além do sensacionalismo, as fake news têm causado problemas graves, arruinando reputações e vidas. As bolhas informacionais, nas quais nos isolamos em ambientes que reforçam nossas próprias crenças, intensificam esse problema. As frases da peça “A verdade só é verdade quando agrada o seu ego” e “Rechaçamos aquilo que não conhecemos” ilustram essa tendência de aceitar apenas o que confirma nossos preconceitos e rejeitar o desconhecido.
O Sensacionalismo de Ontem e de Hoje
A manipulação da informação não é um fenômeno novo, mas as redes sociais potencializaram seu alcance e impacto. Se o Notícias Populares influenciava a opinião pública com suas manchetes chocantes, hoje as plataformas digitais permitem que qualquer pessoa crie e compartilhe conteúdo, verdadeiro ou não, alcançando milhões em questão de minutos. As fake news têm interferido em eleições, causado pânico e dividido sociedades.
Precisamos reconhecer que “a verdade só é verdade quando agrada o seu ego” nos alerta para o viés de confirmação, enquanto entender que “rechaçamos aquilo que não conhecemos” nos encoraja a buscar conhecimento além de nossas zonas de conforto. A peça nos lembra da necessidade de educação midiática e crítica. Devemos desenvolver a habilidade de questionar e verificar as informações que consumimos.
A Produção e a Equipe por Trás da Peça
A realização é da Dona Mirna Cia. de Arte, com direção e dramaturgia de Yuri Garcia. A produção executiva fica por conta de Mayla Fernandes e Carol Honorato, que também atuam no elenco junto com Clau Alves, Gabriel Daves e Waltinho Ribeiro. A peça conta ainda com o talento de Lília Lírio e Samuel Moraes como elenco convidado.
A cenografia é assinada por Djalma Junior, enquanto os figurinos são de Luiz Fernando Oglou e Gabriel Daves. A banda é composta por Lumee//Prismo e Yuri Garcia, com composições de Julia Pagano, Ivan Santos, Luma Garcia Tomao e Yuri Garcia. A preparação vocal é conduzida por Luma Garcia Tomao.
Conclusão
“A Última Fake News” não é apenas um espetáculo teatral; é um convite à reflexão sobre o papel da mídia e da sociedade na construção da realidade. Ao revisitar a história do Bebê-Diabo e traçar paralelos com a era das redes sociais, confrontamos nossa responsabilidade como consumidores e disseminadores de informação.
É crucial lembrarmos que, embora os meios e as tecnologias tenham evoluído, os desafios em torno da verdade e da manipulação da informação permanecem. Cabe a cada um de nós cultivar um olhar crítico e não nos deixarmos levar pelo “pão e circo” modernos que nos são oferecidos diariamente.
A peça está em cartaz até dia 21/Setembro no Teatro do ETA, localizado na Rua Major Diogo, 547. Os ingressos estão disponíveis no Sympla. Recomendo fortemente que todos assistam e participem dessa importante discussão. Além disso, vale a pena seguir a companhia no Instagram para acompanhar seu trabalho e futuras produções.
Por fim, acredito ser fundamental apoiarmos e prestigiarmos produções que não estão no circuito dos “grandes e famosos”. Ao fazer isso, não só enriquecemos nossa experiência cultural, mas também rompemos as bolhas que limitam nossa percepção do mundo. Assistir a espetáculos como este nos permite explorar novas perspectivas e valorizar a diversidade artística presente em nossa sociedade.
Ficha Técnica Completa
Realização: Dona Mirna Cia. de Arte
Direção e Dramaturgia: Yuri Garcia
Produção Executiva: Mayla Fernandes e Carol Honorato
Cenografia: Djalma Junior
Figurinos: Luiz Fernando Oglou e Gabriel Daves
Adereços: Gabriel Daves
Design de Luz: Mayla Fernandes
Maquiagem: Clau Alves
Elenco da Dona Mirna: Carol Honorato, Clau Alves, Gabriel Daves, Mayla Fernandes, Waltinho Ribeiro
Elenco Convidado: Lília Lírio, Samuel Moraes
Banda: Lumee//Prismo e Yuri Garcia
Composição: Julia Pagano, Ivan Santos, Luma Garcia Tomao e Yuri Garcia
Preparação Vocal: Luma Garcia Tomao
Coordenação de Marketing: Carol Honorato e Clau Alves
Identidade Visual e Design: Carol Honorato e Yuri Garcia
Técnico de Som: Thiga Cordeiro
Operação de Luz: Bruno Emanuel
Serviço
Espetáculo: A Última Fake News – Uma Ode-Reportagem ao Sensacionalismo
Temporada: 03/08 a 21/09 (sábados)
Horário: 18h30
Local: Teatro do ETA – Rua Major Diogo, 547
Ingressos: R$ 40,00 (inteira) | R$ 20,00 (meia-entrada)
Classificação Indicativa: 14 anos
Duração: 120 minutos