A conversa começou durante a aula de crítica, enquanto discutíamos cinema comercial. Alguém mencionou a saga Harry Potter, e um colega fez uma observação sobre J.K. Rowling e suas falas transfóbicas, além de seu posicionamento político controverso. A conversa girou em torno da necessidade de ‘cancelar’ o artista, e enquanto ouvia os argumentos e opiniões, comecei a refletir sobre como a postura pessoal de um artista pode interferir na percepção de sua obra.
Enquanto eu pesquisava mais sobre o assunto, surgiu na minha cabeça a questão sobre outros artistas polêmicos: Salvador Dalí e Pablo Picasso.
Dalí, além de sua genialidade surrealista, teve posturas políticas controversas, especialmente por apoiar abertamente o regime fascista de Francisco Franco na Espanha. Ele também era conhecido por suas declarações provocativas e pela busca incansável de fama e fortuna. Para muitos, essa atitude colocava em dúvida sua autenticidade artística e o comprometia como figura pública. Na época, porém, o conceito de ‘cancelamento’ não existia, e muitos de seus contemporâneos o viam como um excêntrico genial. Hoje, com os valores sociais mais sensíveis a comportamentos políticos e éticos, Dalí provavelmente enfrentaria duras críticas e boicotes.
Já Pablo Picasso, embora revolucionário na arte, tinha um histórico de comportamento abusivo em seus relacionamentos pessoais, especialmente com mulheres. Suas atitudes controladoras e, em alguns casos, emocionalmente violentas, geram um conflito ético ao se apreciar sua obra.
Sem dúvida alguma, eles seriam cancelados nos dias de hoje. Isso me fez pensar sobre um tema ainda mais complexo: como conciliar o apreço pela obra com o repúdio às atitudes pessoais do artista?
É quase inevitável que o assunto nos leve a pensar no paradoxo da criação artística: a obra é um reflexo das perturbações internas do artista? E, se gostamos de uma obra, isso não significa que, de certa forma, as perturbações apresentadas nela ressoam em nossas próprias inquietações? Surgiu então a reflexão sobre o quanto as características pessoais do artista se misturam com sua criação, e como nossa identificação pode, de certa forma, refletir também nossas sombras. Se a genialidade de Dalí e Picasso nos fascina, mas suas atitudes nos chocam, será que isso revela algo sobre nós mesmos?
Comecei a pensar ainda mais profundamente sobre isso quando me lembrei do caso de Kevin Spacey.
Como admirar um trabalho tão brilhante enquanto enfrentamos o peso de saber sobre as acusações de abuso que o cercam? E, pior ainda, como lidar com o fato de que, ao assistir suas obras, acabamos contribuindo para manter sua relevância e, de certo modo, seu sustento? A inquietação mora na sensação de que estamos, de alguma forma, endossando ou recompensando comportamentos condenáveis. Mas, ao mesmo tempo, é inegável que as performances de Spacey em filmes como Beleza Americana e na série House of Cards são, no mínimo, inesquecíveis.
Mas não é só no cenário internacional que esse dilema se apresenta. No Brasil, temos exemplos igualmente complexos, como o de Regina Duarte.
Ela foi um ícone das telenovelas brasileiras, protagonizando papéis marcantes como o de Viúva Porcina em Roque Santeiro, uma obra que definiu uma era na televisão. No entanto, nos últimos anos, sua imagem pública sofreu um grande desgaste por conta de declarações políticas polêmicas e episódios controversos.
Um dos momentos mais marcantes foi a entrevista para a CNN, em que Regina minimizou os crimes da ditadura militar e reagiu de forma irritada ao ser confrontada com um vídeo de Maitê Proença, que cobrava mais empatia e humanidade ao abordar o tema. A situação ficou ainda mais delicada quando, durante seu discurso de posse, fez a infame referência ao ‘pum do palhaço’, reforçando a percepção de despreparo e afastando parte do público que antes a admirava.
Pra entender a relevância: Roque Santeiro, Viúva Porcina e Regina Duarte
Vale lembrar que Roque Santeiro foi ao ar em 1985, logo após o fim da ditadura militar, e se tornou um marco na teledramaturgia brasileira por desafiar preconceitos e tabus que refletiam a realidade social da época. A trama, escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva, havia sido censurada em 1975 por causa de seu teor crítico e só pôde ser exibida dez anos depois, com o fim do regime autoritário.
A novela escancarava as contradições morais e religiosas da fictícia Asa Branca, uma cidade que vivia do mito de um santo que nunca foi mártir e de uma fé manipulada pelos poderosos locais. A ironia estava em como a hipocrisia coletiva sustentava a figura de um herói que, na realidade, estava vivo e escondido. Essa desconstrução da moralidade e da santidade abordava diretamente a manipulação social promovida por líderes políticos e religiosos.
Além disso, Roque Santeiro criticava fortemente o patriarcalismo e o machismo, especialmente por meio da personagem Viúva Porcina, interpretada por Regina Duarte. Porcina subvertia o papel tradicional da mulher submissa e silenciosa ao se impor como uma figura forte, extravagante e destemida, sendo dona de si e desafiando os padrões da época. Sua relação com Sinhozinho Malta, o típico coronel autoritário e possessivo, também era marcada por enfrentamentos e jogos de poder, refletindo uma dualidade entre submissão e autonomia feminina.
O personagem de Sinhozinho Malta, por sua vez, representava o coronelismo e o autoritarismo tão comuns no Brasil do interior, com uma postura que ecoava o domínio violento e a falta de escrúpulos dos antigos donos de terra e poder. A novela ironizava essa figura de mando e controle, revelando como ele também era refém de suas próprias ilusões e de seu medo de perder o poder para a verdade.
Portanto, Roque Santeiro não foi apenas um sucesso de audiência, mas um marco cultural que provocou debates e reflexões em uma sociedade que saía de um longo período de repressão e censura. A dualidade dos personagens e o confronto com valores conservadores faziam parte da essência da trama, o que torna ainda mais curioso e paradoxal pensar que Regina Duarte, que deu vida à icônica Viúva Porcina, tenha assumido posturas políticas que contrariam justamente o espírito libertário e crítico da obra.
E aí me pego pensando: como rever e valorizar seu legado artístico sem me sentir conivente com suas posições políticas recentes?? Até que ponto minhas (nossas) memórias afetivas com suas personagens conseguem se manter intactas frente ao desconforto atual?
Esse dilema nos leva novamente à reflexão sobre como lidar com a dualidade entre o talento e as atitudes pessoais. Regina Duarte se tornou uma figura polarizadora, e sua postura política afastou muitos admiradores de sua obra. No entanto, a força de suas interpretações em novelas icônicas permanece viva na memória coletiva, criando um conflito interno sobre como separar a artista da pessoa pública.
A arte não vive sozinha. Ela carrega consigo o peso do criador, e, quando esse criador representa valores que rejeitamos, eu, por exemplo, me vejo dividido entre reconhecer o talento e sentir que, ao apreciar o trabalho, estou sendo cúmplice de suas ações — ainda mais quando falamos em teatro, TV e cinema, onde a presença do artista é tão marcante que se torna quase indissociável da obra. Esse dilema persiste na minha cabeça: consumir a arte é um ato de apreciação ou uma validação de quem a criou? E, se percebo que um ator ou artista se tornou ‘inseparável’ de sua criação, como encontrar um meio-termo que me permita aproveitar a arte sem negar meus valores éticos?
É interessante pensar também na ideia de que a obra ganha vida própria após ser criada, se tornando maior que o criador. Um filme como Beleza Americana, por exemplo, não é só de Kevin Spacey. Envolve centenas de pessoas talentosas que trabalharam para que ele existisse. O mesmo vale para séries como House of Cards.
Da mesma forma, Roque Santeiro não é só de Regina Duarte. A novela contou com um elenco brilhante, uma direção memorável e uma trama que se tornou referência na teledramaturgia nacional, refletindo sobre moralidade, poder e hipocrisia. Mas, mesmo assim, é impossível não pensar imediatamente em sua personagem icônica, a Viúva Porcina, quando falamos da obra.
No entanto, é impossível negar que, quando falamos nesses trabalhos, o primeiro nome que vem à mente é justamente o deles, e isso faz com que a dissociação entre obra e artista pareça quase utópica.
No fim das contas, a escolha de consumir ou não é muito pessoal e depende do quanto você consegue lidar com a dissonância entre apreciar o talento e rejeitar o comportamento. E, às vezes, aceitar essa ambivalência é um passo importante para um entendimento mais profundo sobre como a arte impacta a gente — e sobre como nos sentimos ao confrontar as falhas humanas daqueles cujas obras valorizamos e admiramos. Você já se pegou dividindo sua admiração com sua repulsa por algum artista? Como lida com isso?
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