A Ilusão do Controle
“Só fazem com a gente o que a gente permite.” Essa expressão, tão frequentemente repetida, carrega um peso que parece simples, mas esconde uma complexidade que nem sempre percebemos de imediato. Ao ouvi-la, somos levados a acreditar que temos total domínio sobre as situações que nos cercam, como se bastasse decidir não permitir algo para que ele não ocorra.
Refletindo sobre essa frase no contexto da minha própria experiência – e depois de estudar muito sobre o assunto, percebo como, em relacionamentos abusivos, a manipulação pode ser tão sutil que se disfarça de amor, cuidado ou preocupação. Durante muitos anos, vivi sem perceber que estava sendo controlado, pois o abuso vinha mascarado por gestos aparentemente inofensivos ou até carinhosos. A pessoa abusiva cria uma rede de influência que, pouco a pouco, vai enfraquecendo a capacidade da vítima de enxergar o que realmente está acontecendo.
É comum, nesses casos, que as críticas sejam veladas, os elogios sejam raros e que pequenas concessões sejam exigidas, até que a vítima se veja cedendo continuamente, sem entender por que se sente tão desgastada ou confusa. A manipulação pode se apresentar como um teste constante do amor, colocando a vítima em uma posição de sempre tentar agradar, sem nunca saber exatamente o que está errado ou como consertar a situação. Esse tipo de abuso é insidioso e se infiltra na vida da pessoa de forma gradual, sendo quase impossível perceber o controle que está sendo exercido.
Mesmo quando o abuso físico se manifesta, a pessoa pode permanecer no relacionamento, sem entender por completo o que está acontecendo. Muitas vezes, a vítima se vê aprisionada emocionalmente ou financeiramente ou por outro motivo qualquer, incapaz de encontrar uma saída, o que torna ainda mais difícil perceber o controle que está sendo exercido.
Devido à manipulação constante, ao gaslighting (quando o abusador faz a vítima duvidar de sua própria percepção da realidade), ao medo ou até ao ciclo de violência, em que o abusador alterna entre momentos de agressão e arrependimento, prometendo mudar e fazendo a vítima acreditar que o comportamento abusivo foi um “erro isolado”.
Quando finalmente nos damos conta, o impacto emocional já é profundo, e a frase acaba se tornando uma cruel ironia, porque, na realidade, nunca deixamos conscientemente que isso acontecesse.
Esse tipo de frase parece colocar toda a responsabilidade nas mãos de quem sofre, como se fosse possível identificar e barrar cada movimento de abuso ou controle. No entanto, a realidade dentro de uma relação abusiva é muito diferente. A falta de clareza, a dúvida constante, e o medo são armas poderosas nas mãos de quem manipula. Somente com o tempo, e com a busca por conhecimento, é que essa dinâmica se revela por completo.
Mas será que essa frase faz sentido quando mergulhamos nas profundezas da manipulação psicológica? É justamente essa reflexão que nos leva a questionar o verdadeiro significado de “deixar” que algo aconteça.
Desvendando o Controle Invisível
A manipulação em um relacionamento abusivo não se apresenta de maneira óbvia. Ela se instala lentamente, como uma névoa que obscurece a visão e confunde a percepção. Inicialmente, o abusador pode parecer atencioso, alguém que se preocupa com o bem-estar do outro. Pequenos gestos, aparentemente inofensivos, vão se acumulando até formarem uma teia de controle que aprisiona a vítima, sem que ela perceba a extensão da armadilha.
Esses abusadores costumam utilizar técnicas que minam a autoconfiança de forma quase imperceptível. Comentários que, à primeira vista, parecem inocentes, na verdade, carregam uma carga de crítica disfarçada. Frases como “você não muda mesmo” são lançadas sem contexto, deixando a pessoa se perguntando o que precisa ajustar, em vez de entender que o problema não está nela, mas na manipulação sutil que a cerca. Essa estratégia de comunicação ambígua cria um ciclo de autoavaliação constante, onde a vítima tenta, inutilmente, atender a expectativas que nunca foram claramente definidas.
Além disso, o abusador frequentemente alterna entre momentos de aparente afeto e demonstrações de desaprovação, criando uma montanha-russa emocional que desgasta e desorienta. A vítima se vê presa em uma tentativa desesperada de recuperar a harmonia, muitas vezes sacrificando seus próprios desejos e interesses para evitar conflitos. O controle é estabelecido não pela força bruta, mas pela erosão gradual da autoestima e da autonomia.
Mesmo em situações onde há violência física, pois o agressor costuma usar formas de manipulação emocional e psicológica para manter o controle sobre a vítima. A violência física pode ser intercalada com pedidos de desculpas, promessas de mudança ou momentos de carinho, criando um ciclo de abuso. Esse ciclo confunde a vítima, tornando-a mais suscetível a acreditar que o abusador pode melhorar, e isso mantém a pessoa presa na relação.
O medo gerado pela violência física atua como uma ferramenta de controle, mas é a erosão da autoestima e da autonomia da vítima que faz com que ela se sinta incapaz de sair da relação ou buscar ajuda. O abusador muitas vezes consegue convencer a vítima de que ela é responsável pela violência ou de que não merece algo melhor, reforçando ainda mais o poder que exerce sobre ela.
É nesse contexto que a frase “só fazem com a gente o que a gente permite” perde sua força – e sentido. A vítima não “permite” que o abuso aconteça; ela é levada a acreditar que está no controle, enquanto, na verdade, suas escolhas e percepções estão sendo manipuladas de maneira constante e insidiosa. A manipulação cria uma ilusão de liberdade, onde cada concessão parece uma decisão própria, quando, na verdade, é o resultado de um controle invisível, mas implacável.
Reconhecer esse tipo de abuso e manipulação exige um olhar crítico e uma conscientização profunda. É preciso desvendar as camadas de controle emocional que foram sendo construídas ao longo do tempo, para que a vítima possa, finalmente, enxergar a realidade e retomar as rédeas da própria vida.
O Peso da Frase
Agora que temos uma compreensão um pouco melhor sobre a sutil manipulação em um relacionamento abusivo, voltemos à frase que originou essa reflexão: “só fazem com a gente o que a gente permite”. Quando essa afirmação é direcionada a alguém que viveu ou está vivendo abuso, seja ele físico ou psicológico, o impacto para a vítima é devastador. Longe de oferecer uma saída ou entendimento, a frase reforça a sensação de culpa, invalidando a dor e confundindo ainda mais quem já foi tão profundamente manipulado.
Para a vítima, ouvir que ela “permitiu” o abuso gera um ciclo de autoquestionamento: Será que eu estava no controle o tempo todo? Será que sou eu o problema?. Essas dúvidas corroem a sanidade mental, fazendo com que a pessoa se sinta responsável pelo sofrimento que enfrentou. Esse tipo de frase, por mais que tenha a intenção de incentivar um senso de autonomia, acaba sendo uma forma sutil de culpabilizar, levando a vítima a acreditar que sua dor é uma escolha pessoal.
Essa invalidação pode desencadear uma série de consequências emocionais. A pessoa, já fragilizada pelo controle emocional sofrido, começa a questionar se está exagerando, se realmente houve abuso, ou se está “louca”. Isso gera uma barreira que impede a vítima de compartilhar o que vivenciou, com medo de que sua experiência seja minimizada ou que mais uma vez lhe digam que ela “deixou” aquilo acontecer. O resultado é o isolamento, a vergonha e a perpetuação do trauma.
Quando essa frase é lançada de forma leviana, sem considerar o contexto da manipulação envolvida, ela se torna mais uma camada de abuso. A vítima, já ferida pela relação, é novamente agredida ao ser responsabilizada pelo que sofreu, como se o controle estivesse sempre em suas mãos. Isso mina ainda mais a coragem de pedir ajuda, pois compartilhar a experiência se torna um risco emocional enorme, diante da possibilidade de ser desacreditada ou julgada.
Portanto, antes de dizer “só fazem com a gente o que a gente permite”, é essencial entender que o abuso psicológico raramente é visível para quem o vive. A manipulação cria uma realidade distorcida, onde a vítima acredita estar no controle quando, na verdade, está sendo conduzida sutilmente para ceder, calar e aceitar. Entender essa complexidade é fundamental para oferecer suporte, em vez de reforçar o ciclo de culpa e silenciamento.